Mestrado – câncer – quarentena – morte – terapia
Faz tempo, não é mesmo? Último texto escrito por mim foi em julho de 2020. Se você está lendo este texto do futuro, saiba que aconteceu muita coisa nesse meio tempo. Eu já não divulgo o blog faz tempo e como você pode ter visto, meus últimos posts falam sobre resenhas de livros (algo que eu jamais deveria ter perdido o amor), e vou usar ele mais como um diário. Eu já não acompanho mais blogs de viagem e não vi motivos para escrever nesse período de pandemia (que ainda não acabou, caso você do futuro continue lendo até aqui). Escrever é uma das coisas que eu mais gosto então tomei coragem e voltei a escrever. Sem me preocupar muito com regência verbal, links e informações acuradas de viagem, tanto que não vou nem revisar antes de postar, senão vou apagar tudo.
Enfim, o título não é bait. Pensei em resumir esse tempo nessas 5 palavras. Minha cabeça está tão cheia que eu não consigo mais organizar meus pensamentos. Então fiz um roteirinho (olha lá a referência a viagens de novo) pra tentar me guiar.
Logo que voltei da Itália e comecei o blog, consegui uma bolsa de mestrado no Brasil, que irônico não é? Saí daqui para estudar na Europa e voltei. Trabalhei duro, igual uma maluca como bolsista. Ser bolsista é puxado. Ser bolsista em universidade privada é 54754 vezes pior.
Estava tudo no projeto, limpo e claro como o dia: mestrado – doutorado na Alemanha – docência acadêmica-viajar o mundo (começando sozinha e terminando com um moço bonito que eu iria conhecer numa trilha no Nepal, ou num bar no Sul da Itália, ou perdendo os chinelos na Croácia). Estávamos em 2019, um caos no cenário político brasileiro, mas eu estava confiante que logo iria embora, afinal eu já estava no sexto semestre do curso de alemão, era só em breve fazer a proficiência e conseguir uma universidade gratuita. Às vezes eu acredito que as coisas acontecem por um motivo. Às vezes eu tenho raiva de quem fala isso, frase capacitista do caramba. Faltavam uns 4 meses para eu defender o mestrado, eu estava engordando e procurei uma personal para treinar na academia. Ela sugeriu que eu parasse com o anticoncepcional para os treinos terem mais efeitos.
Descobri da maneira mais ridícula possível que estava com câncer. Não sei se consigo voltar às memórias daquele dia no consultório da médica. Não lembro direito. Só lembro de ter mandando uma mensagem para as minhas amigas dizendo “a médica pediu pra eu voltar acompanhada, vai ver to grávida kkkk”. Eu estava sozinha, e meu exame acusava um sarcoma muito raro, sendo que eu não tinha nenhum sintoma, nem ela soube explicar. Era uma quarta feira, lembro por que eu ia dar aula logo depois disso, e era a turma dos adolescentes. Um deles na última aula tentou entrar na lixeira e caiu da cadeira em seguida, a outra aluna falava francês e pensa(va) sem ser cirurgiã neurológica. Eu lembro o dia da semana e que tava frio. A cami me levou para casa. Depois eu não lembro, só de chorar como não chorava desde criança. Não admitia que estivesse acontecendo comigo, eu odiava meu cabelo na época mas chorava pensando que teria que raspar.
Fui encaminhada para um cirurgião oncológico que não ria das minhas piadas. O consultório era cheio de idosos, e a Ana Maria Braga passava na tv. Todo consultório que eu fiz exame, todo médico que deu a “segunda opinião” toda a sala de espera tinha a porra da Ana Maria Braga comendo escondidinho de mandioca e carne de porco as 10 da manhã. Eu não podia transparecer que tava triste senão as pessoas ficariam triste, então eu sempre tinha alguma piada. Entre essas semanas de exames com médico não querendo me operar pois afinal eu tiraria o útero e não teria filhos, o que para os médicos era um absurdo. Eu não era ouvida, eu sentia vontade de gritar com todos. Por que ninguém me escuta? Eu nunca quis ter filho, tira essa merda que tá me matando de mim logo antes que seja pior. Antes de finalmente marcarem minha cirurgia eu tive que ouvir uma palestra sobre como funciona barriga de aluguel (não é esse termo, nem lembro como chama). Enquanto esse processo rolava, eu perdi os meus 3 queridos cachorros. Um deles virou tatuagem e eu ainda sonho com ele.
Fui pra cirurgia feliz e com meu note na malinha pois eu precisava estudar pra proficiência e finalizar a dissertação. A cirurgia atrasou horas, eu estava peladinha na mesa rindo com a enfermeira que fez a mesma cirurgia pedindo pra ela em quantos dias eu ia poder voltar à ativa kkkk. Sugeri para o cirurgião que fossemos comer xis até que o anestesista atrasado chegasse. Ele não riu. Típico. E era gremista.
Hoje eu tento lembrar da dor mas acho que meu cérebro apagou. Foram 4 dias de morfina atrás de morfina, qualquer movimento doía. Minha amiga levou um pendrive com séries pra eu ver. Um rolinho do Tinder que eu estava saindo foi me ver, que vergonha. Hoje ta casado. Eu assisti as 12 temporadas de The Big Bang Theory e lembro da dor quando ia rir. Meu cabelo ficou péssimo, minha pele descamou toda, eu fiquei inchada. Decidi raspar o cabelo e usar minhas perucas de cosplay.
Não consegui fazer a proficiência, então sem chances tentar doutorado. Defendi o mestrado em fevereiro de 2020. Nunca vi uma sala tão cheia de gente, meus colegas me levaram muitos presentes. Na mesma semana já estava conversando com a coordenadora de outra universidade onde eu daria duas disciplinas a partir de maio. Ok, tudo entrando nos eixos novamente.
Corta pra março de 2020. Pandemia, tudo fechado. “Ah é só uma gripezinha lá na Europa”. Disciplinas canceladas. Nunca mais voltaremos às aulas presenciais. Doutorado na Alemanha já eras. E cá estamos nós completando 1 ano de pandemia e nem busquei meu diploma de mestre ainda. Perdi meus avós pra essa pandemia, e a culpa de não ter me despedido da minha avó ainda não superei. Mas de algum jeito ela sabia, pois semanas antes ela me deu o anel de noivado dela. Não consegui olhar pra ele ainda. As memórias dela fazem parte da minha dissertação.
Os primeiros meses de pandemia foram assustadores, aquele monte de notícia, todo mundo tentou manter a sanidade fazendo curso gratuito de absolutamente tudo. Eu fiz escolhas ruins no Tinder, precisava sentir algo, sentir aquele frio na barriga, borboletas no estômago, afinal, nada melhor que achar que vai morrer para se sentir mais vivo do que nunca. E eu havia achado que ia morrer quando estava com câncer, e agora acreditava no fim do mundo por causa da pandemia.
Mas a realidade é mais chata que a fantasia, na minha cabeça eu estava realizando quests incríveis quando depois de alguns encontros eu voltei a me sentir morta por dentro. Podia trocar a pessoa, o contexto, o que fosse, nada mais acendia aquela vontade de conquistar o mundo. Fiz tudo o que eu queria fazer em um ano para comemorar que estava bem, mas essa sensação de adrenalina é pior que droga, você sempre quer mais e mais e de diferentes maneiras. De repente, sair com alguém diferente toda a noite já não adiantava mais. Todo mundo era previsível. A história na minha cabeça sempre foi mais legal, será que é por que eu lia muita fanfic quando adolescente? E ai vieram as crise de ansiedade. A primeira foi no studio onde eu faço poledance, falta de ar e ânsia de vômito, corri pro banheiro enquanto usava um salto de 20cm de altura. Faltava o ar e eu queria chorar ao mesmo tempo. Qual era o motivo? Eu não sei. Foi um ano tão cheio e tão vazio ao mesmo tempo. Parece um problema tão besta, tão frescura enquanto as pessoas tinham coisas serias acontecendo. Sempre pensei isso. Eu só não queria sentir de novo aquilo.
Foi ai que vi que algo estava errado, procurei terapia e nos primeiros 10 minutos eu chorei tanto que nem eu sabia ser possível. É a primeira vez que escrevo sobre isso. Não tenho doutorado na Alemanha, nem tenho meu departamento de pesquisa numa universidade, não dei a volta ao mundo e ainda não encontrei meu moço bonito numa trilha pelo Nepal que vai topar fazer planos de viagem comigo enquanto prepara um Spritz pra mim. Mas eu voltei a escrever. E voltei a ler livros que eu gosto. E isso eu já considero um grande passo.
Update: e deletei o tinder, o que eu considero vitória máxima